sexta-feira, 14 de maio de 2010

Esboço de uma leitura de Roberto Bolaño (1)





Primeiro passo para conhecer a obra literária do escritor chileno Roberto Bolaño, falecido em 2003, a leitura do romance Estrela Distante (1996) foi muito prazerosa nesses últimos dias. Bolaño, que parece estar sendo muito estudado nos programas de pós-graduação em Literatura dos Estados Unidos, atualiza em Estrela Distante suas memórias dos últimos dias do governo de Salvador Allende e o posterior golpe militar de Augusto Pinochet. Nesse contexto, estão inseridos escritores que fazem parte de uma oficina literária de poesia. O foco de Bolaño concentra-se na figura do poeta Alberto Ruiz-Tagle, recém-chegado à oficina, motivo de curiosidade dos demais. Segundo o narrador, Ruiz-Tagle tem todas as características que os demais, militantes da esquerda chilena, não têm. Ruiz-Tagle veste-se bem, fala em tom baixo e é por demais rico e sofisticado para um poeta (não exatamente nessa descrição esquemática que faço aqui, agora). Mais adiante, saberemos que Ruiz-Tagle é, na verdade, Carlos Wieder, tenente aviador das forças armadas do Chile.

Três pontos chamam atenção em Estrela Distante: 1) Bolaño não tira de Wieder a qualidade de poeta, mesmo depois de descoberta a farsa do tenente. Wieder é poeta reconhecido e admirado em seu país. Seus poemas-enigma são escritos pela fumaça nos céus da cidade de Concepción. Em alguns momentos, o próprio narrador perde seu inseparável senso crítico e deixa entrever uma ponta de fascinação/perplexidade diante das manobras radicais de Wieder nos céus do Chile. De uma penitenciária, o narrador passa sete páginas contemplando junto com os outros presos os voos kamikazes de Wieder e seus poemas que anunciam o desejo de morte. Seus atos performáticos e sua escrita são de vanguarda. Bolaño, portanto, nos diz que que arte vanguardista e governo violento coexistem no mesmo espaço e são produzidos pelas mesmas pessoas. A elite intelectual que escreve poesias e dialoga com a mais alta vanguarda européia é a mesma que pode trucidar os opositores do regime político. Arte não exclui atrocidade, tampouco é passaporte para o céu. O mesmo pode ser dito da crítica literária, que tece mil elogios ao poeta Wieder.

2) Bolaño desautoriza a hierarquia entre ficção e relato testemunhal. Avisa, de início, que está retomando a história do tenente Ramírez Hoffman, o qual Bolaño havia relatado em seu livro anterior, La literatura nazi en América (1996, ainda sem tradução no Brasil). Dá a entender que o autor está partindo de um relato real para o ficcional. No entanto, La literatura nazi en América foi concebido como uma enciclopédia imaginária de escritores americanos que de algum modo colaboraram com ditaduras militares. Para potencializar ainda mais a confusão, Bolaño mistura os registros de real e ficção e polemiza ao citar autores reais que tiveram algum tipo de ligação com governos autoritários. Por outro lado, sua narrativa é vacilante. Deixa para o leitor o julgamento da veracidade do que é narrado. Este narrador, quando não imagina situações – e esclarece para o leitor que está conjecturando – que não presenciou, está relatando o que ouviu de outro. Seu papel como ator da história é praticamente nulo, principalmente na segunda parte do romance, quando viaja para Europa e passa a narrar a trajetória de Carlos Wieder através dos telegramas que recebe de seu amigo Bibiano O’Ryan. O narrador só torna a se confrontar com a História e com o passado quando recebe a tarefa de encontrar Wieder. 

3) O duplo. É preciso fôlego para estudar e se debruçar sobre o duplo, o Doppelgänger. O duplo é um assunto que atravessa a história da literatura, a psicanálise e o cinema. Vide Borges e o cinema expressionista alemão, por exemplo. O duplo dá a Bolaño a possibilidade de trabalhar com a promiscuidade da arte. A contradição - e o que constitui o duplo - está em Ruiz-Tagler e Wieder serem tão diferentes um do outro e, ao fim, serem a mesma pessoa, uma síntese. Do mesmo modo, o lugar da arte como porto seguro (una, sagrada, defensora de boas causas) é desestabilizado para dar lugar à sua face anárquica, múltipla e inapreensível. Por outro lado, Bolaño-autor pouco se contém como narrador do romance. A todo momento, sua projeção, se não chega a encontrar no espelho um Wieder, ela é muitas vezes o amigo Bibiano. Bibiano é testemunha de toda a trama, assim como também é autor de um livro sobre escritores fascistas na América. Bolaño é, pois, o narrador e Bibiano, desloca e distribui seus interesses e seus temas aos dois personagens, recompondo o duplo. Nenhuma novidade em termos de linguagem. Interessante é perceber que o jogo se estabelece entre dois duplos e não um. A síntese Ruiz-Tagler/Wieder e a síntese Narrador/Bibiano e as oposições entre os pares Ruiz-Tagler/Wiedler e Narrador/Bibiano.   

P.S.: A propósito da polêmica em torno de La literatura nazi en América, no nosso âmbito geográfico, a guilhotina de Bolaño cai sobre Rubem Fonseca. O boato relaciona a saída de Fonseca da Companhia das Letras ao fato de a editora ter comprado recentemente os direitos de publicação de Bolaño, no Brasil.
Sobre a polêmica Roberto Bolaño x Rubem Fonseca, aqui e aqui.
La literatura nazi en América para download.

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