terça-feira, 15 de junho de 2010

Viajo porque preciso, volto porque te amo


Uma das imagens mais belas e significativas do cinema contemporâneo é o plano final de Eu não quero dormir sozinho (2006), do diretor malaio Tsai Ming-Liang, em que um colchão flutua lentamente sobre a água e vai entrando aos poucos em quadro para encerrar o filme. A imagem acima é um fotograma do novo filme de Karim Aïnouz e Marcelo Gomes, diretores dos mais belos filmes do cinema brasileiro contemporâneo (Madame Satã, Céu de Suely e Cinema, Aspirinas e Urubus). A narração sonora que cobre a imagem do colchão em Viajo porque preciso, volto porque te amo nos diz que ele seca à luz do sol depois de uma noite de amor de muitos fluidos. É forte a referência, pelo menos ao título do filme de Tsai Ming-Liang. José Renato, geólogo, 35 anos, correndo as estradas a trabalho, não quer dormir sozinho. Nos filmes de Tsai Ming-Liang e em Eu não quero dormir sozinho, a água é sempre fator preponderante e de incômodo nas relações humanas. No filme de Gomes e Aïnouz, o personagem quer inundar as cidades percorridas com a represa que será instalada em breve.  Aqui, a secura desoladora do sertão incomoda e angustia.

Viajo porque preciso, volto porque te amo não é apenas um road-movie. Ele é também um filme de família frustrado. As imagens sem foco, amadoras, de um filme de família estão lá. O ponto de vista de José Renato – narração de primeira pessoa radicalizada porque nunca veremos o personagem em campo – , no entanto, só alcança outras famílias, outros casais, fazendo um inventário humano das cidades, sem alcançar a si próprio. Não consegue estabelecer seus vínculos matrimoniais com a mulher que ficou no passado e que lhe deu um “pé na bunda”.

Por fim, cabe ressaltar o trânsito constante entre documentário e ficção (nada novo nisso) num dos inúmeros exemplos de como esse diálogo se estabelece. As imagens que vemos em Viajo porque preciso, volto porque te amo foram produzidas anos antes, sem a intenção de uma ficção. Eram imagens documentais, solras, sem uma narrativa elaborada. A ideia do filme de ficção através da inserção de uma voz narradora deu sentido àquelas imagens. A câmera subjetiva revela muito de fictício quando constrói um personagem em trânsito pelo sertão. Por outro lado, há muito de um tipo tradicional de imagem documental nas tomadas fixas que miram as gentes do nordeste, sustentando o plano até causar o riso ou a inibição do ator social.